Fim da história
Ricardo Gondim
Há alguns anos, um obscuro funcionário do Departamento de Estado norte-americano propôs que a história chegara ao fim. O nome de Francis Fukuiama logo se tornou conhecido nos meios acadêmicos. Seus argumentos causaram enorme furor entre os defensores da dialética histórica. Ele defendia que o fim das grandes utopias, principalmente o esfacelamento da proposta soviética de um estado marxista, exauria a possibilidade de se escrever “História”, com agá maiúsculo. Estaríamos condenados a um futuro que tediosamente se alongaria numa sucessão de fatos menores, portanto, uma “historinha” – meros acontecimentos cotidianos.
Ele simplesmente expressava a mentalidade de uma época, também chamada de pós-modernidade. Um contrapé histórico, caracterizado pela decepção com as propostas do iluminismo europeu e com as afirmações da modernidade. Eram elas: a) o avanço do saber científico; b) o domínio da natureza pela tecnologia; c) o aumento exponencial da produtividade e da riqueza material; d) a emancipação das mentes após séculos de opressão religiosa, superstição e servilismo; e) o progresso e salvação dos povos pelas instituições políticas; f) o aprimoramento intelectual e moral dos homens por meio da ação conjunta da educação e das leis. Não se aguarda mais o paraíso proletário sonhado por Marx, o eldorado do capitalismo ocidental ou o mundo feliz do positivismo em que imperam a “ordem e o progresso”.
Realmente parece que se acabaram os sonhos, que se arriaram as bandeiras apaixonadas das idéias e que os visionários cederam lugar aos hedonistas. Os grandes ideólogos dos partidos políticos, acossados nos corredores das universidades, cederam os palcos para os marqueteiros. Diminuíram as barricadas e trincheiras nas ruas das grandes cidades – os jovens optaram pelos corredores refrigerados dos shoppings. A China, maior país comunista do planeta, criou um novo paraíso capitalista, com instituições políticas totalitárias e uma economia de mercado.
Idealistas, idealistas mesmo, restaram os fundamentalistas islâmicos, defensores de um mundo pré-moderno, guerreiros dispostos a deitar suas próprias vidas por um Estado teocrático. Vislumbram um mundo homogeneizado pelo Corão e sujeito à disciplina e censura de um Ministério de Costumes e Tradição, que condenaria as mulheres a retrocederem séculos, sujeitando-as novamente às mordaças medievais.
Fora esses segmentos islâmicos mais radicais, o mundo carece de sonhos e ideais. Gabriel Perissé afirma que uma das idéias mais fortes que leu na sua vida estava pichada em um tapume e dizia: “Se você está tranqüilo é porque está mal informado”. Entorpecemos nossas consciências com a desinformação. A televisão nivelou-nos por baixo. A avalanche de novos fatos que se sucedem em um mundo globalizado não nos deixa tempo para a reflexão. Sucumbimos a um rápido processo de imbecilização. Há uma cultura de consumo que anestesia o Ocidente.
Fernando Pessoa, em seu magnífico Livro do Desassossego, afirmou que, ao herdarmos uma descrença generalizada tanto no “cristianismo como na igualdade social e na ciência e nos seus proveitos”, acabamos nos contentando em meramente viver. E arremata inclemente: “Ficamos, pois, cada um entregue a si próprio, na desolação de só sentir viver. Um barco parece ser um objeto cujo fim é navegar; mas o seu fim não é navegar, senão chegar a um porto. Nós encontramo-nos navegando, sem a idéia do porto a que nos deveríamos acolher”. O veredicto de Pessoa, mesmo vaticinado há quase 100 anos, é doloroso: “Sem ilusões, vivemos apenas do sonho, que é a ilusão de quem não pode ter ilusões [...]. Sem fé, não temos esperança, e sem esperança não temos propriamente vida. Não tendo uma idéia do futuro, também não temos uma idéia de hoje, porque o hoje, para o homem de ação, não é senão um prólogo do futuro. A energia para lutar nasceu morta conosco, porque nós nascemos sem o entusiasmo da luta.”
Melancolicamente, também constato que a esperança igualmente anda trôpega entre os cristãos. Percebo que nos contentamos em repetir dominicalmente nossos cultos. Sujeitamo-nos à ladainha enfadonha de orações prontas, paliativos espirituais em um mundo inclemente. Acomodamo-nos silenciosamente em viver contentes por simplesmente existirmos.
Mas algo dentro de mim se revolta. Quero sonhar. Não estou contente em viver por viver. Preciso navegar rumo ao “grande Porto”. Não aceito que a “roda viva” carregue irremediavelmente o “destino pra lá”. Não aceito viver na fronteira da complacência e do comodismo. Quando Chico Buarque compôs “Roda Viva”, em 1967, expressou o clamor de minha geração: “A gente vai contra a corrente / Até não poder resistir / Na volta do barco é que se sente / O quanto deixou de cumprir”.
Partilho do sentimento de Vaclav Havel, o dramaturgo tcheco: “Esperança não é lutar porque vai dar certo, mas porque vale a pena”. Tenho esperança, sem saber bem e ao certo como será o amanhã, mas que vale a pena lutar por ele. Aguardo, sem qualquer prova, um porvir melhor, menos kafkiano. Acredito na graça comum, distribuída sem acepção, que nos habilita a construir um mundo justo e verdadeiro. O evangelho é boa nova, contradiz a entropia física e nos convoca a lutar mesmo que nunca contemplemos resultado prático.
Decidi que não preciso estoicamente esperar um futuro sombrio. Não me acomodarei à profecia de mau agouro do Fukuiama. Renovarei, neste novo ano, meus ímpetos juvenis e não aceito que estejamos preparando uma “Gotham City” para os nossos filhos.
Ambiciono encarnar o que Ghandi propôs: “Quero ser no mundo aquilo que quero ver no mundo”. Se quiser ver no mundo idéias valerem mais que conveniências, abraçarei minhas convicções com tanta paixão que renasçam coerências e coragem, paixão e compaixão, ação e ternura. Quero entregar-me de tal forma aos ideais do reino que, sem heroísmos quixotescos ou messianismos inconseqüentes, possa deixar um mundo melhor para a próxima geração.
Escreverei mais e com a convicção de que posso iluminar com minhas palavras. Certo escritor conta que, quando menino, presenciou uma operação cirúrgica improvisada em sua pequena cidade, no meio da noite, sobre a mesa de uma farmácia. Era preciso suturar, sem anestesia, um homem retalhado, vítima de uma chacina. E ele, o menino, o futuro escritor, ficou com a incumbência de segurar o lampião. Tremendo. Assustado. Não podia fazer nada. Mas iluminava a cena.
Lutarei por ideais, abraçarei causas, romperei com as minhas zonas de conforto. Farei de meu discurso religioso uma arma que apunhale a mediocridade, desmonte estruturas sociais perversas e que seja sempre uma contradição ao espírito desta época.
Acreditarei na força da igreja. Não a institucional, mas aquela que, inaugurada no Pentecostes, saiu a salgar e a encarnar o reino de Deus entre as pessoas. Trabalharei para que o corpo de Cristo não infantilize ou aliene, mas produza o “novo homem” que pode gerar sociedades solidárias, economias justas e um mundo com menos ódio.
Desejo dar-me às pessoas, cultivar amizades. Acreditar que as fagulhas da bondade de Deus na humanidade ainda prevalecem diante das trevas. Quero aprender a ingenuidade e desaprender a esperteza, aumentar minha paciência e diminuir minha aspereza.
Plagiarei, sem remorsos, as palavras de Jeremias: “Quero trazer à memória o que me pode dar esperança” (Lm 3.21). Até que se levante “o sol da justiça, trazendo salvação nas suas asas” (Ml 4.2). Maranata!
Soli Deo Gloria.
Um comentário:
Ele tem repetido essas afirmações em várias oportunidades. Teoricamente, demonstra estar vendo onde a grande maioria não está. Geralmente, essas visões frutificam na dor e no sofrimento. Não sei nada sobre o atual momento do Ricardo. Mas, os sintomas estão ai.
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